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O Senhor dos Anéis

Dezembro 31, 2003

“No reino de Valinor foi criada Valimar, a cidade dos Valar, no centro do continente de Aman. O Círculo do Julgamento estava situado exactamente entre Valimar e o Monte Ezellohar.” Estou a imaginar a cara dos que me estão a ler: perplexos, com esta estranha descrição. Entre os mais novos, talvez não! Alguns identificarão facilmente este espaço, na geografia de ficção d’ “O Senhor dos Anéis”. Curiosamente, a designação escolhida para uma Comunidade Urbana coincide com a palavra criada por Tolkien para o centro de um território imaginado como cenário de violentíssimas disputas de poder: Valimar. O acaso tem destas coisas!

As movimentações em torno da reorganização dos espaços intermunicipais têm feito emergir uma realidade política local condicionada pelo tenso equilíbrio entre pequenas lideranças ciosas dos seus pequenos feudos. Na raiz das decisões predomina uma lógica de ambições, de humores e desamores dos presidentes de câmara. Fazem-se cálculos de poder pessoal para tomar opções que depois se justificam com marketing político. Ontem, definiam-se afinidades a partir da geografia, da cultura e da história comuns proporcionadas pelos rios e respectivos vales. Hoje, porque esta justificação não se ajusta aos superiores interesses dos chefes, contratam-se excelentes técnicos para conceber outras linhas de força, capazes de servir como instrumento de novas razões circunstanciais. O território, as populações, as raízes culturais, o sentido de identidade… são materiais moldáveis, com que se fazem e desfazem construções efémeras para jogos de poder.

O acesso aos fundos comunitários, ao invés de constituir um estímulo à concertação de objectivos, acrescenta a esta realidade um fenómeno de “caça aos dinheiros da Europa, antes que acabem!” estimulando ansiedades, ilusões e desconfianças de todo o tipo. Ou, em momentos de aperto, alicerçando raciocínios como aquele com que fomos brindados recentemente quando alguém, com o brilhantismo que lhe conhecemos, afirmou que “não comemos identidades”. Tornando óbvio, ao falar assim, a ânsia de garantir um lugar à mesa, e declarando-se disponível para comer qualquer coisa. O seu grau de exigência é… fisiológico, como, em esforço de compreensão, me tentou explicar um jovem amigo, conhecedor da pirâmide das motivações de Maslow, procurando, com essa teoria, emprestar alguma dignidade ao populismo demagógico do argumento.

Afinal, o que está em causa neste processo? Apenas um alinhar de tácticas para apanhar uns dinheiritos do poder central e da Europa, para realizar obras de fachada que iludam os eleitores? Ou algo mais sério, que poderá constituir-se em estratégia de desenvolvimento integrado e sustentável de âmbito sub-regional? Da autenticidade desta primeira atitude dependerão todas as demais considerações. Porque, embora estejamos a responder a condições impostas por má legislação – até pelas inúmeras incógnitas e confusões que suscita – é possível torná-la muito pior, se enveredarmos pela irresponsabilidade de a utilizar uns contra os outros, entre concelhos com história e carências comuns, cuja unidade poderá ser decisiva para superar obstruções e estrangulamentos que persistem impedindo o seu desenvolvimento.

Quem tenha estado minimamente atento às declarações dos diferentes protagonistas da política no Alto Minho, facilmente tira três conclusões:

Primeira – Nunca foram invocadas razões políticas minimamente convincentes para justificar a divisão. Apenas motivações de natureza pessoal dos autarcas envolvidos.

Segunda – A transversalidade das opiniões no conjunto dos partidos políticos, que tem sido referida para suavizar as contradições dos interessados em dividir, tem a sua génese na afirmação do poder pessoal fora e dentro dos partidos, clara e absolutamente divorciada dos interesses colectivos.

Terceira – Objectivamente, a única organização partidária que colhe vantagens de poder com esta divisão é o PSD. Estamos perante uma situação em que a expressão popular “dividir para reinar” faz todo o sentido.

Feita esta análise pode-se, mesmo assim, reconhecer que Caminha, isolada, não possui a solução para resolver este problema. E, ao que sabemos, na pessoa da senhora presidente, a câmara também não procurou, sequer, fazer o que quer que fosse. Refugiou-se em silêncios. Enquanto outros iam manifestando as suas opiniões e o debate ia surgindo naturalmente, ela prometia dar a palavra ao concelho e só depois decidir. Até que, ao perceber os inconvenientes, para a sua posição, de uma discussão pública sobre o assunto, acelerou todos os passos. E, num curto espaço de tempo, tudo passou a estar claro: o executivo camarário aceita a divisão e quer colocar Caminha em ruptura com os seus parceiros do Vale do Minho reforçando a posição do Vale do Lima. Vai mais longe na sua teoria sobre a lógica desta nova comunidade, a que se juntará Esposende, e ao defini-la alicerçada no corredor litoral – Caminha, Viana e Esposende – desvaloriza a força estruturante dos rios e respectivos vales. Diz a senhora que o tempo dos vales acabou e agora o que nos garantirá dinheiro da Europa é o litoral. No entusiasmo da novidade, vai-nos exigindo que “a deixemos trabalhar”, o que equivale a um “calem-se, não suporto opiniões diferentes das minhas”. Só que estes assuntos são demasiado importantes para depender dos humores e dos compromissos pessoais de alguns. Os cidadãos do concelho deverão reflectir, ser ouvidos e a sua vontade colectiva prevalecer nesta decisão. Se a senhora presidente não entendeu essa necessidade, resta-nos acreditar que a assembleia municipal funcione, reponha serenidade no processo e permita aos munícipes manifestarem em consciência a sua vontade inequívoca, para que a decisão que vier a ser tomada reflicta um propósito colectivo. Aí sim, independentemente do partido que representem, essa é a obrigação moral dos eleitos, no respeito pela verdade democrática.

(texto publicado nos jornais “O Caminhense” e “caminha2000″ em Dezembro de 2003)